sexta-feira, 25 de maio de 2012

# 100


«Tal como os indivíduos apenas são "livres" e "autónomos" na medida em que tomam as suas decisões no âmbito da forma capitalista, mantendo-se compatíveis com a "necessidade" da cega valorização do valor e as respectivas leis pseudo-naturais, eles apenas são "iguais" na medida em que se encontrem igualmente submetidos à forma do valor, sendo sujeitos da sua realização. O "ser humano enquanto tal" é o Homem meramente abstracto; o Homem, na medida em que pode ser sujeito do valor. É apenas a isso que se reporta o seu "reconhecimento" enquanto Homem, e é apenas neste sentido que ele pode possuir "direitos do Homem" universais e ser um sujeito jurídico no âmbito de estruturas estatais. Daí decorre que no exterior disso, ou seja, fora do implacavelmente limitativo universo da forma do valor, ele deixa de ter qualquer semelhança com um ser humano, vendo-se reduzido ao patamar dos animais ou da vil matéria. A capacidade legal geral e, por extensão, também a referente aos direitos humanos, encontra-se assim vinculada à capacidade de valorização, de trabalho, de venda, de financiamento ou, por uma palavra: à "rentabilidade" da existência que, para qualquer outro efeito, é declarada "objectivamente" nula» in Kurz, Robert (2003); Ontologia Negativa. As eminências pardas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade.

sábado, 19 de maio de 2012

# 99

"O último português com emprego" (Crónica matinal de Ricardo Araújo Pereira na Rádio Comercial; ouvir).

Ironizando com a afirmação de Passos Coelho de que estar desempregado pode ser uma "oportunidade para mudar de vida", Ricardo Araújo Pereira faz uma antevisão do mercado de trabalho em Portugal em Maio de 2013, quando resta apenas um indivíduo empregado. Nesse processo, Ricardo coloca-se numa aporia insolúvel: por um lado, tem de desmentir satiricamente Passos Coelho, o que também significa que o emprego tem de ser apresentado de forma positiva; por outro, a caricatura do último português empregado não pode deixar de ser também a caricatura da vida miserável de todos os empregados e do mal-estar que secretamente todos sentem. Por isso também é dito: "Toda a gente que eu conheço já conseguiu desempregar-se e eu continuo a ir para o trabalho todas as manhãs armado em parvo". A ambiguidade atravessa assim toda a crónica, hesitando entre o elogio implícito ao "trabalho abstracto" e o seu reconhecimento como algo desprezível e sem sentido. Como não ver na irónica definição de emprego dada essa mesma ambiguidade: "Ora bem como é que eu hei-de explicar: isto consiste em trabalhar, ou seja, desenvolver... vamos lá... labuta a troco de uma determinada verba". Se o desemprego não é uma "oportunidade para mudar de vida", o emprego também não o é.

domingo, 13 de maio de 2012

# 97


No quadro da sociedade do trabalho não há “livre escolha” senão dentro da “jaula de ferro” da valorização do capital, que se mantém como pressuposto a priori de toda a reprodução social. Por isso mesmo, Passos Coelho acrescenta que a "livre escolha" consiste afinal em escolher entre o mau e o pior: “no meio da crise em que estamos, claro que é preferível ter trabalho, mesmo precário, do que não ter, claro que é preferível trabalhar mais do que não trabalhar, vender mais barato do que não vender”, mas “o modelo para o futuro tem de ser o de acrescentar valor”.

Entretanto, a indignação moralista da esquerda em torno da inverdade da afirmação de Passos Coelho silenciou a possibilidade de um desvio radical promissor: a crise de desemprego estrutural como "oportunidade para mudar de vida" e de irmos verdadeiramente para lá da sociedade do trabalho.

terça-feira, 8 de maio de 2012

# 94

"Não vivo na fantasia de que tudo é bonito e o meu objetivo é trabalhar sempre mais e mais. Quero é continuar a sentir que estou no bom caminho" (David Carreira in Caras, aqui).


A capacidade de síntese de Carreira faz inveja a muitos filósofos: o mundo da mercadoria pode ser péssimo mas eu continuarei a ver no trabalho um objectivo em si próprio; não interessa estar no bom caminho, o que interessa é apenas sentir que se está no bom caminho.



segunda-feira, 7 de maio de 2012

# 93

"A profissão mais difícil do mundo é a melhor profissão do mundo" (video). É este o lema da campanha "Obrigado Mãe" que arrancou hoje, elaborada para os Jogos Olímpicos 2012 pela Procter & Gamble, um conglomerado de empresas de mercadorias de limpeza e higiene pessoal. Assim, é-nos dito que "a P&G esteve sempre presente no negócio de ajudar as mães. Os produtos das nossas marcas ajudam a tornar a vida das mães, em todo o mundo, um pouco melhor todos os dias. É por isso que decidimos não só patrocinar os atletas olímpicos, mas também as pessoas que tornaram possível a sua presença nesta competição... as suas mães. E não falamos somente das mães dos atletas olímpicos, celebramos também o que cada mãe faz para ajudar o seu filho a ter sucesso - todas as mães, em todo o mundo".

Este pensamento miserável pode ser desenvolvido:

"Ser mãe é uma profissão difícil, sobretudo quando as mães se desdobram entre dois e três empregos. Além disso, é uma profissão que infelizmente ainda não é paga; ser mãe pertence assim ao grupo dos trabalhos precários, mas nada que uma continua luta política não resolva. Mostrar que o trabalho de mãe cria valor é portanto um desafio político de máxima urgência, e há muitas feministas que já mostraram isso mesmo. É certo que o nosso patrão macho não nos tem apoiado muitas vezes nesta luta que dura há séculos, mas há cada vez mais homens dispostos a lutar ao nosso lado pela reivindicação de um salário de mãe. Até porque isto de criar sujeitos concorrenciais para a competição olímpica no mercado universal por um posto de trabalho não pode ser tarefa exclusiva das mães. Felizmente que há empresas como a P&G, que disponibilizam não só detergentes a baixo preço, que nos ajudam na lida da casa, como fantásticos cremes e shampoos que nos mantém desejáveis durante muito mais tempo e nos possibilitam trazer ao mundo ainda mais sujeitos concorrenciais".

quarta-feira, 2 de maio de 2012

# 91

"A palavra trabalho designa toda a actividade realizada pelo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e circunstâncias. No meio de toda a riqueza de actividades para as quais o homem tem capacidade e está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade, qualquer actividade humana pode e deve reconhecer-se como trabalho".

(Papa João Paulo II. 1981. "Laborem Exercens. O trabalho humano", Carta Encíclica; Braga: Editorial A.O., p.7)