quinta-feira, 1 de agosto de 2013

# 132



“Vamos convir que o trabalho não é agradável”, observam ainda os desembargadores Eduardo Petersen Silva, Frias Rodrigues e Paula Ferreira Roberto. “Note-se que, com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões, e por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos.”

(in Público, 31/07/2013).

quinta-feira, 25 de abril de 2013

# 130

"Ajuda às famílias em troca de boas notas" escolares das crianças.

O ministro da educação já tinha afirmado que devemos ensinar às crianças que "estudar vale a pena para poder ganhar mais dinheiro”. Esse princípio ainda colocava o rendimento do estudo das crianças como um horizonte subjectivo a longo prazo. Mas agora que os abonos de familia se foram há quem queira ir mais longe e fazer desse objectivo remoto da educação um mecanismo quotidiano de socialização infantil: uma associação de "utilidade pública" do Douro, apelidada de Bagos d'Ouro, fundada pelo padre Amadeu Castro, tem como princípio "ajudar" as famílias "desfavorecidas" em função do "rendimento" escolar das respectivas crianças. Num contexto de desemprego estrutural dos adultos, miúdos e miúdas de seis anos não só devem assumir-se como sujeitos concorrenciais como ficam também literalmente responsáveis por pôr o jantar na mesa. O idiota do padreco  fala por isso como um verdadeiro teólogo do mercado: "Dar, ajudar mas ter também sempre alguma coisa em troca. E esse algo em troca é que eles tenham uma boa carreira, um bom sucesso educacional, que na escola obtenham resultados. Porque cada vez mais nós vemos uma sociedade em que o descarregar (!) a consciência é dar (!)". Que é como quem diz: "não há jantares grátis".

sábado, 2 de fevereiro de 2013

# 129

A propósito da metafísica do trabalho no feminismo moderno, Roswitha Scholz faz notar que «na história moderna das ideias do patriarcado capitalista encontram-se alguns projectos de filosofia de vida que apresentam a mulher como o “indivíduo mais completo” em comparação com o homem, porque ela, enquanto dona de casa e mãe (e desde logo em correspondência com todo o seu carácter) que está fora do processo laboral, não tem tendência à unidimensionalidade, e tem portanto os sentimentos melhor integrados. Quando nos falam assim, não se trata senão da versão pós-moderna, invertida nos pólos, da visão patriarcal: a mulher como dona de casa e mãe não é mais “completa” pelo facto de estar fora do processo laboral, mas antes o contrário, é mais “completa” como pessoa “duplamente socializada”.» Por isso mesmo, espera-se hoje que a mulher “queira tudo” e “faça tudo”; que, por um lado, trate dos filhos, das refeições, dos pais e sogros acamados ou doentes, do conforto do marido e suas necessidadezinhas sexuais e de atenção e, por outro lado, que tenha um emprego, que faça carreira, que traga dinheiro para casa. Que se transforme naquilo a que Scholz chamou “eierlegende Wollmilchsau”, cujo equivalente em português seria uma “faz-tudo”, um “pau para toda a obra”, mas que traduzido literalmente significa “uma porca que dá leite, lã e ovos”. A “dupla socialização” não deve por isso ser vista como uma forma positiva, prova de uma suposta capacidade feminina inata de multifuncionalidade, mas antes como uma condição social negativa da fase actual do patriarcado capitalista.

Este modelo feminino atravessa todas as classes sociais, e se por um lado é dilacerante para as classes baixas por outro lado é apresentado apologeticamente através das mulheres que desempenham cargos de liderança ou maior visibilidade em campos de conotação masculina, com destaque para a política; Roswitha Scholz refere nesse contexto a admiração geral do feminismo por destacadas mulheres da política alemã, nomeadamente a ministra da família Ursula von der Leyen, “figura que, sem esforço, reúne em si a boneca Barbie, a mãe de sete filhos, a que cuida dos pais com Alzheimer e a mulher de carreira”. Em Portugal, a referência neste âmbito parece ser a super-mulher-super-ministra Assunção Cristas, sobretudo agora que está grávida do quarto filho.

Os múltiplos desdobramentos exigidos pelo desenvolvimento da “dupla socialização” só podem entretanto ser garantidos se a totalidade das actividades femininas (tanto as laborais como as de reprodução) forem, senão desempenhadas, pelo menos organizadas de acordo com a lógica do trabalho abstracto. A “dupla socialização” não é já apenas a sensação de “ter dois trabalhos”, mas antes gerir as duas vidas como se fosse um só trabalho. Não é por acaso que Assunção Cristas defende que a «estratégia para conciliar vida de deputada, professora, mãe de três filhos e um casamento de 12 anos é encarar tudo como uma vida só: "Não há duas vidas, só uma”». Esta “uma vida” só pode ser uma vida formalmente subsumida à lógica temporal e empresarial do trabalho abstracto, independentemente do conteúdo das actividades. No caso de Assunção Cristas, conhece-se «de cor os horários das missas em Lisboa»; e aos filhos, «também já ensinou que o mais importante ao domingo é ir à missa. “O resto é acessório”». Toda a vida pessoal é agora medida com critérios de produtividade, por isso se considera aqui que «os três anos mais produtivos (!) da sua vida foram os que passou no Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça (...): concluiu a tese de doutoramento em Direito Privado; teve o segundo filho e ficou grávida do terceiro; e trabalhou com três governos».

Aqui são já bem visíveis alguns traços do que o patriarcado produtor de mercadorias espera da dupla socialização das mulheres do século XXI: a mulher é afectuosa, mas há um tempo para os afectos; mas também não é só afectuosa, é eficaz nos afectos. A mulher duplamente socializada não é só um objecto de desejo sexual; é um sujeito verdadeiramente profissional do sexo. Não se limita a comprar as mercadorias para o jantar com o salário do marido; compra-as com o seu próprio salário. Não cozinha apenas bem; cozinha rápido. Não governa apenas a casa; governa todo um ministério. O mesmo é dizer: “uma porca que dá leite, lã e ovos”.